*Édison Carlos
Outro dia estava lendo uma matéria de um jornal da Paraíba que dizia que 17% dos domicílios do Estado sequer tinham um banheiro para que as pessoas pudessem “fazer suas necessidades”. Segundo a nota, são quase 180 mil paraibanos, brasileiros, despejando suas fezes e urina a céu aberto; uma situação que, apesar de grotesca, é realidade comum para outros 13 milhões de cidadãos deste país.
Isso me lembrou do texto do escritor Mario Vargas Llosa que afirmava que a privada deveria ser eleita como ícone da civilização e do progresso, ao invés do telefone ou da Internet. Me junto ao time do escritor de que ter ou não banheiro, por mais absurdo que pareça, ainda significa um divisor no mundo, uma autentica parede desumana dividindo a dignidade entre mundo e submundo; dos com e sem acesso a este “luxo”.
Vivemos um desastre ambiental diário e silencioso. Como menos de 44% da população está ligada a uma rede de esgotos e menos de 30% deste esgoto é tratado, segundo dados do Ministério das Cidades – SNIS 2008, são bilhões e bilhões de litros de resíduos jogados ‘in natura” todos os dias nos nossos rios, lagos, bacias e mar. Um poderosíssimo veículo transmissor de doenças, como mostrado pelo Instituto Trata Brasil em seu último estudo “Esgotamento sanitário inadequado e impactos na saúde da população”, realizado com dados das 81 maiores cidades do país (acima de 300 mil habitantes). Pelos números levantados, as diarreias respondem atualmente por mais de 50% das doenças relacionadas ao saneamento básico inadequado, sendo que, em 2008, as 10 piores cidades em taxas de internação por diarreias responderam por 38% das hospitalizações por esse tipo de doença, mesmo sua população respondendo por apenas 9% do público pesquisado. E o pior de tudo, os resultados comprovam que o grupo mais vulnerável desta tragédia são as crianças de até 5 anos de idade. Em 2008, foram 67,3 mil crianças desta faixa etária internadas por diarreias, número que representou 61% de todas estas hospitalizações.
E para mostrar que isso não é exclusivo daqueles que moram em áreas menos favorecidas, vale lembrar que, somente em Janeiro deste este ano na Baixada Santista em São Paulo, foram mais de 8.700 casos de diarreia, muito disso fruto das fortes chuvas que alagam as redes de esgoto “democratizando” a doença pelas cidades e praias.
Por estas e outras tragédias silenciosas que convivem conosco, o último Ranking do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) divulgado em novembro último pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) mostrou o Brasil apenas na posição 73 entre os 169 países avaliados. Como o novo cálculo do IDH considera, entre outras coisas, os “anos esperados de escolaridade” e a “Renda Nacional Bruta”, os especialistas são unânimes em dizer que um país somente avançará no IDH se progredir simultaneamente nas três dimensões avaliadas – saúde, educação e renda. Como não poderia deixar de ser, a falta de coleta e tratamento dos esgotos afeta negativamente todos os três fatores, portanto ajudam a manter o Brasil longe dos melhores países em desenvolvimento humano.
O lançamento dos esgotos sem tratamento na natureza é um atentado ao cidadão que acontece 24 horas por dia, 365 dias por ano. Os esgotos representam hoje o maior impacto ambiental às águas do país, principalmente nas grandes regiões metropolitanas. Não temos como falar em cidades sustentáveis ou “sustentabilidade” enquanto nossos cursos d´água forem vítimas da falta dos serviços de coleta e tratamento dos esgotos, legítimo fruto do descaso e falta de prioridade política das autoridades nas últimas décadas.
A solução para este desastre sem charme passa por todos os elos do Governo, mas, sobretudo pela vontade dos prefeitos, responsáveis pela solução do problema segundo a Lei que rege o saneamento. Ele pode constituir sua própria empresa municipal ou conceder o serviço a uma empresa estadual ou privada, fazer uma PPP ou um sistema misto – solução existe. Mas sua responsabilidade não pára por aí... ele deve, por força da lei do saneamento, priorizar também a formulação do Plano Municipal de Saneamento Básico de seu município, sem o qual não poderá mais acessar os recursos federais. Cabe a autoridade local, portanto, vários desafios, mas principalmente o de olhar cuidadosamente a gestão dos serviços prestados à sua cidade garantindo que se persiga a redução das perdas de água, a transparência da informação à população, o cumprimento das metas e a aplicação de tarifas adequadas à realidade local.
Tanto quanto aos prefeitos, cabe ao Governo Federal, que acertou na criação do Ministério das Cidades e na Secretaria Nacional de Saneamento Básico, e aos Governadores zelar pela melhoria urgente da gestão das empresas que operam o saneamento no país. Não é suficiente, portanto, o Governo Federal acenar com os vultosos recursos do PAC porque está mais do que provado que, com os gargalos e burocracias que enfrenta o setor, estes recursos chegam em doses homeopáticas e, a continuar desta forma, serão incapazes de cobrir o gigante déficit que atinge o setor nas próximas décadas.
Cabe a todos nós o papel de reivindicadores ferozes pela solução deste quadro incompatível com o Brasil que se apresenta hoje no mundo. Cabe aqui também um chamado urgente às entidades ambientalistas e aos profissionais da saúde de todo o Brasil para que discutam urgentemente esta tragédia nacional em seus círculos de contato porque, diferentemente dos temas que afetarão nosso futuro, os esgotos estão nos contaminando hoje, agora...poluindo nossas águas e adoecendo nossas crianças.
*Édison Carlos é presidente executivo do Instituto Trata Brasil