Turismo de risco em áreas vulneráveis para a transmissão da esquistossomose mansônica no Brasil

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Constança Simões Barbosa, Mariana Sena Barreto e Elainne Christine de Souza Gomes [caption id="attachment_7151" align="alignleft" width="376"] Dra. Constança Barbosa - embaixadora do Trata Brasil[/caption] A indústria turística é uma das mais importantes atividades econômicas da contemporaneidade e a que apresenta o mais elevado índice de crescimento no contexto econômico mundial. Segundo a Organização Mundial de Turismo, houve uma expansão no número de viagens internacionais de 115,4% desde o ano de 1995 e há previsão do incremento de mais 58,6% até 2030, quando 57% das chegadas internacionais serão em destinos de economia emergente 1,2. O Brasil se enquadra nesse cenário de expansão do setor turístico em decorrência da multiplicidade de atrativos naturais existentes no país, tendo recebido em 2013 aproximadamente 6 milhões de viajantes internacionais que se somam aos quase 89 milhões de desembarques de voos nacionais 3. O incremento do setor turístico tem trazido contribuições para o desenvolvimento econômico e social do país, valorizando espaços antes deprimidos economicamente. No entanto, para viabilizar o desfrute dos ambientes, atrair e acomodar os visitantes, paisagens naturais têm sido modificadas prejudicando áreas de fragilidade ambiental. Essas modificações infringidas aos espaços naturais e provocadas pela especulação imobiliária da dinâmica turística expõem nativos e visitantes ao risco de contrair doenças, a exemplo da esquistossomose mansônica. A esquistossomose mansônica é uma das mais importantes doenças endêmicas do Brasil, tendo como agente etiológico o Schistosoma mansoni e como hospedeiros intermediários caramujos do gênero Biomphalaria. No Brasil, a transmissão ocorre em 19 unidades federativas. Estima-se que cerca de 6 milhões de pessoas estejam infectadas, e que aproximadamente 25 milhões de indivíduos estejam expostos ao risco de contrair a doença 12. Devido à sua magnitude, ações para controlar a esquistossomose vêm sendo desenvolvidas no Brasil desde 1975 por meio do Programa Especial de Controle da Esquistossomose (PECE), criado e operacionalizado pela Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (SUCAM), sendo substituído pelo Programa de Controle da Esquistossomose (PCE) na década seguinte. Entretanto, apesar dos esforços, a área de transmissão tem expandido nas últimas décadas para localidades urbanas e litorâneas antes indenes, demonstrando tendência a mudanças no padrão epidemiológico tradicional da esquistossomose. Em Pernambuco, cresce o êxodo de indivíduos de áreas rurais, muitas vezes parasitados pelo S. mansoni, para localidades turísticas litorâneas atraídos pela farta oferta de serviços. Passam a residir em ambientes periféricos insalubres, contaminando as coleções de água doce, naturalmente habitadas pelos caramujos vetores da esquistossomose. Na estação das chuvas os criadouros com caramujos infectados transbordam provocando a infecção humana em massa. Cenários como esses foram descritos em 12 municípios litorâneos do Estado de Pernambuco, incluindo o balneário de Porto de Galinhas, em Ipojuca 5,10,15. Porto de Galinhas alcançou elevada importância nas rotas do turismo mundial na década de 1980. Em 2000, foram identificados 15 focos de transmissão da esquistossomose, sendo registrado o primeiro surto epidêmico de casos agudos da doença nessa localidade. A introdução da doença nesse balneário iniciou com a chegada de trabalhadores rurais como mão-de-obra para empreendimentos turísticos, e os caramujos foram introduzidos na localidade junto com as águas e areias do Rio Ipojuca empregadas como material para a construção civil. O modo de ocupação e as modificações daquele espaço turístico, aliados a condições climáticas e sanitárias adversas, foram os fatores responsáveis pela manutenção da doença que hoje é considerada endêmica em Porto de Galinhas. Em diversas localidades litorâneas turísticas do Brasil existem hospedeiros intermediários da esquistossomose, e há registros da transmissão da doença em vários destinos costeiros do país. A expansão desse agravo para localidades litorâneas, apesar de expressiva, não minimiza a transmissão da doença nas tradicionais áreas rurais endêmicas do Brasil que mantêm prevalências elevadas para a esquistossomose porque preservam condições sanitárias adversas e hábitos socioculturais propícios à endemia. Nos últimos anos, diante do incremento do turismo no Brasil e considerando a presença das condições ambientais atrativas, o turismo rural tornou-se uma nova fonte de renda para muitas famílias que residem no campo. A indústria do turismo rural tem incentivado antigas propriedades agrícolas, economicamente depreciadas, a diversificar as suas atividades oferecendo estruturas voltadas para recreação, lazer e hospedagem, requalificando e revalorizando seus espaços. Entretanto, modificações produzidas no ambiente natural para oferecer condições atrativas ao turismo, aliadas ao pouco investimento em saneamento, têm produzido ambientes insalubres capazes de manter a transmissão da esquistossomose, com registros frequentes de casos agudos da doença em diversas localidades turísticas rurais brasileiras, onde o fluxo de visitantes e sua interação com ambientes estruturalmente desequilibrados favorece a propagação da doença pelo país e pelo mundo. É importante destacar que viajantes expostos à infecção por esquistossomose desenvolvem a forma aguda da doença, uma vez que nunca tiveram contato com o parasita S. mansoni. A infecção aguda é autolimitada e viajantes podem retornar a seus locais de origem sem que tenham a detecção do agravo e tratamento oportuno, contribuindo assim para o estabelecimento da doença em áreas indenes. Desse modo, o turista pode se tornar um potencial disseminador da doença esquistossomótica, uma vez que transita entre espaços endêmicos e não endêmicos. Casos de transmissão e disseminação da esquistossomose por turistas têm sido identificados nos últimos anos na Europa, onde em 2014 foi relatado o primeiro caso humano da esquistossomose autóctone desde a eliminação desta doença na década de 1960. Um viajante alemão foi diagnosticado com Schistosoma haematobium após realizar atividade aquática recreativa no sul da Córsega, na França 20. Em seguida, foram identificados 10 casos idênticos na mesma localidade 20,21. Também existem relatos da migração de paciente com esquistossomose hematóbica na Ilha de Lampedusa, na Itália 22. Ainda, estima-se que 2,5% dos turistas espanhóis podem retornar à Espanha infectados por Schistosoma, diante do aumento significativo do número de viagens para áreas endêmicas. Tais dados demonstram que a esquistossomose está longe de ser controlada, em níveis local/nacional e internacional. Diante do exposto, fica clara a necessidade de se conhecer as condições ambientais das localidades turísticas do Brasil no sentido de identificar riscos potenciais à saúde, reorganizando e saneando os espaços de modo a impedir que turistas contraiam esquistossomose e outras doenças vetoriais. Os profissionais de saúde das localidades turísticas devem estar atentos ao diagnóstico e tratamento dos doentes locais, e ter ciência da vulnerabilidade à forma clínica aguda a que estão expostos os turistas não imunes. Por fim, é essencial abordar a saúde do turista como um conjunto de ações de abrangência intersetorial, especialmente entre a vigilância em saúde e secretarias de turismo, em um esforço conjunto para a produção e manutenção de ambientes turísticos saudáveis, valorando os espaços naturais brasileiros e evitando a exposição de turistas ao risco de adoecimento por esquistossomose.

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